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Um roteiro para a Cracolândia

21 de junho de 2024

Esboçamos neste escrito um possível roteiro para a montagem de um Programa de Ação Executiva para a Cracolândia, tendo por referência os estudos do Grupo de Trabalho Interinstitucional (GTI) da Câmara Municipal de São Paulo. Vamos tentar uma modesta contribuição, aberta a críticas e sugestões, para o esforço de governos que têm lutado para resolver a chaga do consumo de drogas a céu aberto nas ruas da Luz, com que São Paulo convive há tantos anos.

Em síntese, estamos propondo a reunião dos esforços dos setores público e privado, trabalhando em organização a ser criada, com padrão de excelência de gestão, imune a mudanças de rumos nas transições de mandatos governamentais e apoiada por experiência internacional comprovada. Essa estrutura deverá executar um Programa de Ação Executiva cujo escopo partirá dos subsídios produzidos pelo GTI, devidamente complementados por contribuições da nova organização, tudo cuidadosamente alinhado com os objetivos públicos concernentes.

A Cracolândia representa um drama social e humano, cuja principal vítima são grupos de pessoas que, aprisionadas pelo vício, vegetam naquele bairro em condições sub-humanas, coexistindo com a fome, o crime e a insalubridade. Especialistas multidisciplinares, que têm trabalhado com dedicação para resolver o drama, implementaram todo um cabedal de instalações físicas e procedimentos médicos e assistenciais, que talvez tenham evitado uma disseminação maior do infortúnio, mas foram impotentes para resolver o problema.

 

Não temos experiência profissional nessa temática, portanto não podemos julgar soluções técnicas. Vamos então ouvir especialistas, drogadictos e terceiros prejudicados, em pronunciamentos recentes.

 

Em junho de 2022 foi formado o GTI da Cracolândia, criado por iniciativa da Comissão Extraordinária de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de São Paulo. Esse grupo era integrado por vereadores, deputados da ALESP, Ministério Público, Defensoria, OAB/SP, representantes do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, do Comitê Pop Rua e de organizações populares da sociedade civil. Realizaram-se quatro reuniões, abertas à participação dos interessados, discutiram-se os achados e elaborou-se um relatório final em dezembro de 2022.

A leitura desse relatório fornece um panorama da triste realidade que afeta os vulneráveis à droga, bem como da insegurança e prejuízos impostos aos moradores e comerciantes da região. Expõe também os insucessos dos esforços para equacionar tão sério problema, não obstante algumas iniciativas bem endereçadas, mas interrompidas sem critério evidente. Vale a pena percorrer as páginas com os depoimentos ao GTI, que são muito elucidativos. A melhor síntese, talvez, esteja numa única frase de uma moradora das redondezas: “Por que o poder público deixou o problema crescer?”

 

Para enquadrar tão grave desventura em panorama mais amplo, veja-se o que o relatório final informa sobre uma avaliação do nosso país, no cenário mundial: o Brasil está em último lugar, entre 30 países, no ranking do Índice Global de Políticas de Drogas 2021[1], logo abaixo de Indonésia e Uganda. A produção desse índice é uma iniciativa do Consórcio para a Redução de Danos, uma parceria global da sociedade civil, redes comunitárias e universidades.

No anexo do presente documento (abaixo), o detalhamento da pontuação brasileira suscita uma pergunta inevitável: como resolver um problema local de drogas, se as soluções, além de outros fatores, enfrentam um substrato jurídico-regulatório nacional adverso?

 

Grande mérito teve o GTI nos levantamentos realizados e sobretudo na edição do relatório final. Fica a impressão de que, embora não tenha apontado um roteiro detalhado para o trabalho subsequente, as informações que apresenta já poderiam fundamentar a elaboração e início de um Programa de Ação Executiva para a Cracolândia – inteligente, respeitoso e explorando os sucessos de experiências internacionais nesse campo.

Não vemos tal Programa como simplesmente mais um, dentre os que, sucessivamente, foram tentados pelas administrações públicas que se sucederam em São Paulo. Ao reconhecer que a solução para o problema tem vertentes de atuação com alcances cronológicos que vão do curto ao longo prazo, o Programa se muniria de robustez institucional suficiente para assegurar a continuidade de suas iniciativas. E seria formatado segundo um modelo jurídico que ensejasse também, sem perda dos objetivos públicos colimados, o máximo possível de capacidade executiva, frequentemente tolhida no governo, onde ótimos talentos costumam ser reprimidos por amarras burocráticas nem sempre justificáveis.    

 

O atendimento dessas duas indispensáveis condições, e a compreensiva dificuldade histórica do setor público para obter resultados significativos, recomenda que a direção do Programa seja partilhada entre os setores público e privado, em uma parceria que deve receber um nome como ALIANÇA PELA SAÚDE DA LUZ ou similar. Trata-se de um projeto onde cada parceiro reconhece que a especialíssima natureza do problema requer um esforço conjunto incomum, iluminado por alto grau de consciência cidadã, em benefício da urbe onde vivemos e de nossos irmãos flagelados pela droga.

 

Assim, ensaiamos abaixo uma série de sugestões de natureza gerencial, assumindo (i) que serão implementadas as modificações que elas requeiram, nos aparatos legislativo e regulamentar, e (ii) que será definido logo de início o escopo técnico especializado do Programa.

  1. O Programa deverá ser gerido por uma organização que reúna esforços e recursos suficientes dos setores público e privado, e de agências e fundações nacionais e internacionais de financiamento, com formato institucional a definir, possivelmente uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, que possa celebrar parcerias com o poder público. Essa organização, designada provisoriamente por ALIANÇA, terá capacidade para executar a política pública do setor, aplicada a uma área da cidade, objetivando melhorar os serviços e a eficiência da gestão nesse espaço. Seu estatuto deve garantir flexibilidade gerencial e continuidade de atuação nas transições de mandato das duas esferas de governo.

  2. A cobertura geográfica do Programa será tal que abranja as ruas ou bairros com presença mais intensa de usuários em logradouros públicos, mas limitada de início à de um projeto-piloto. Essa cobertura será ampliada após um ano de atuação da ALIANÇA, mediante entendimentos com o poder público.     

  3. A ALIANÇA adotará um modelo de gestão por resultados, que sejam estabelecidos mediante planejamento estratégico e supervisionados por um conselho público-privado, com apurações bianuais;

  4. A ALIANÇA obterá assessoria internacional de entidade pública que seja ou tenha sido responsável pela gestão bem sucedida de projeto em outros países, com finalidade semelhante à sua – candidatos potenciais serão Portugal e Canadá (Vancouver).

  5. A atuação da representação privada na ALIANÇA será intensiva, sempre respeitando os objetivos públicos em pauta.

  6. A audiência dos stakeholders será realizada mediante instrumentos de controle social que colaborem com eficiência conclusiva, tendo como referência os rumos estabelecidos de comum acordo, conforme a alínea (ii) acima.

  7. No decorrer das atividades para a constituição da ALIANÇA haverá pontos de controle para aferição da observância aos objetivos públicos e avaliação da viabilidade política, operacional e financeira. 

  8. Possíveis participantes da direção da ALIANÇA serão os representantes governamentais pertinentes, associações de classe (Fiesp, Fecomércio etc), conselhos profissionais (OAB etc), imprensa e um escritório de advocacia de direito administrativo trabalhando pro bono.

A crescente problemática das drogas em áreas urbanas exige soluções inovadoras e eficazes. O enfrentamento ao consumo delas, em uma região específica da cidade, pode ser eventualmente delegado para uma organização público-privada, desde que implementado de forma responsável e transparente. Tal estratégia deve ser acompanhada por ação pública compatível e proficiente no combate ao tráfico, esta indelegável.

A presente proposta de um novo modelo gerencial de controle do consumo não significa a desresponsabilização do Estado, uma vez que ele continuará presente na direção da organização, garantindo o respeito aos direitos humanos e à legislação.

A parceria, com gestão por resultados e apoio na experiência internacional exitosa, deve ser desenhada para operar com agilidade e permitir a implementação de ações abrangentes e focadas na comunidade. Programas de prevenção, educação e reabilitação podem ser desenvolvidos e executados de forma eficiente, também com a participação ativa de ONGs, instituições de ensino e empresas locais. Exemplos nacionais e internacionais devem ser espelhados na medida do possível.

Do ponto de vista do envolvimento do setor privado em política pública, a lição da Bill & Melinda Gates Foundation, obviamente em outra escala e com objetivo diversificado, não deixa de ser estimulante.  

O plano executivo do Programa deverá ser completo, contendo escopo, método, metas, monitoramento, finanças, governança, compliance, recursos digitais no estado da arte e instrumentos de controle social.

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Última hora: O material acima estava pronto e prestes a ser publicado quando a imprensa, neste exato momento (21/06/2024), expõe, na primeira página, ação Triagem, da véspera, da Prefeitura na Cracolândia, que é o oposto de tudo o que a experiência vitoriosa de outros paises recomenda para a abordagem desse problema. Nada poderia ilustrar de modo tão convincente a importância os argumentos expostos no texto acima.

 

 

 

                                                                     Foto: Jornal O Estado de São Paulo

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Atualização em 23/062024 a partir de pesquisa na nova plataforma de IA denominada POE

Experiências urbanas 

Vancouver, Canadá - Vancouver implementou uma abordagem abrangente de redução de danos, incluindo o primeiro local de injeção supervisionado da América do Norte. Eles também se concentraram em expandir o acesso à terapia de substituição de opioides e a distribuição de naloxona. As avaliações mostraram reduções nas overdoses e outros benefícios de saúde pública.

 

Essen, Alemanha - A cidade adotou uma estratégia de "Quatro Pilares" nos anos 90, equilibrando prevenção, terapia, redução de danos e aplicação da lei. Isso incluiu o estabelecimento de salas de consumo de drogas supervisionadas e o foco na integração dos usuários de drogas aos serviços sociais.

 

Lisboa, Portugal - Além da política nacional de descriminalização de drogas, Lisboa desenvolveu programas locais inovadores. Por exemplo, sua iniciativa "Respostas Integradas" co-localiza serviços de saúde, sociais e de aplicação da lei para fornecer apoio holístico aos usuários de drogas.

 

Amsterdã, Holanda - Embora a Holanda seja bem conhecida por suas políticas relativamente permissivas em relação à cannabis, Amsterdã também foi pioneira em abordagens de redução de danos para drogas pesadas. Isso inclui tratamento assistido por heroína, financiado com fundos públicos, e salas de injeção seguras.

 

Sydney, Austrália - O estado de Nova Gales do Sul, onde fica Sydney, experimentou salas de consumo de drogas e programas de desvio, que redirecionam infratores de baixo nível para tratamento em vez do sistema de justiça criminal.

Os temas comuns nesses modelos bem-sucedidos são: foco em saúde pública, redução de danos, integração de serviços sociais e uma recusa à criminalização do uso de drogas. Claro, os contextos locais exigem adaptações, mas essas experiências internacionais oferecem lições valiosas.

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[1] O Índice Global de Políticas sobre Drogas é uma ferramenta de responsabilização única que documenta, mede e compara as políticas sobre drogas a nível nacional. Fornece a cada país uma pontuação de 0 a 100, em que 100 representa o alinhamento total de um núcleo selecionado de políticas de drogas e a sua implementação com as recomendações das Nações Unidas sobre direitos humanos, saúde e desenvolvimento, conforme estabelecido na Posição Comum do Sistema das Nações Unidas sobre drogas.

Anexo

Detalhamento da pontuação do Brasil no Indice Global de Políticas de Drogas

Triagem Cracolândia.png
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