Em defesa da Constituição
A Constituição Federal de 1988, base do ordenamento jurídico brasileiro, reflete os anseios da sociedade por democracia, justiça social e desenvolvimento econômico. Nascida pós ditadura, ela estabelece princípios fundamentais que pretendem nortear o advento de uma sociedade justa, livre e solidária, com especial atenção à dignidade da pessoa humana e à erradicação das desigualdades sociais e regionais.
Tais princípios fundamentais são a soberania nacional, a participação da cidadania na criação do amanhã, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Ela ainda preconiza o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum, essencial à qualidade de vida, e impõe ao poder público e à sociedade o dever de protegê-lo para as futuras gerações.
A Constituição é a regra do jogo. É o solene acordo que a sociedade brasileira celebrou consigo mesma, traçando, além dos objetivos, o balizamento para percorrer a trajetória até o futuro almejado. Nos 36 anos de sua vigência houve progresso social e econômico no país, justificando a afirmativa de alguns de que estamos melhor do que em 1988. Mas também é válido dizer que o progresso foi lento e desigual: o Brasil continuou e continua preso na armadilha do baixo crescimento, a desigualdade social segue resiliente, o meio ambiente sofre danos talvez irreversíveis, generalizou-se a sensação de insegurança pública nas cidades.
Pior do que tudo foi a degeneração do processo político, impulsionada pelo aviltamento das mídias sociais trazidas pelas tecnologias digitais. Uma inovação revolucionária, que descortinava horizontes promissores, abriu campo para o debate raso e desagregador, que ultrapassa até o limite do insulto. A polarização é lamentada, mas aceita e praticada.
É nesse panorama sombrio que se insere a atuação de um Parlamento que optou por se rebaixar. Jamais as regras formais ou tácitas do comportamento político parlamentar, na vigência do regime dito democrático, foram mais violadas do que nos dias de hoje. O dever de representar os anseios dos eleitores tornou-se meramente corporativo, sem o crivo dos princípios constitucionais, que deveriam estar acima de tudo. Há discrepâncias? Sem problema, muda-se a Constituição, até durante a noite, se preciso for.
O mais importante instrumento de gestão governamental, o orçamento público, está desmoralizado até a beira do absurdo. Seu calendário de elaboração virou letra morta, sem causar espanto nem escândalo, imerso em inacreditável atmosfera de apatia. Em obediência ao marco legal, o Executivo Federal deveria enviar o projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO ao Congresso Nacional até 15 de abril de cada ano. O projeto deveria ser devolvido para sanção antes do recesso de julho. Veja-se a realidade: o Congresso aprovou a LDO no dia 18 de dezembro! E o ano de 2024 encerra-se sem que tenha sido votada a Lei do Orçamento Anual para 2025. O atraso pode até ter sido autorizado, mas é óbvio que o resultado é disfuncional.
Ademais, o Congresso encontra-se em litígio com o Judiciário em torno de uma prática que é tranquilamente designada por...Orçamento Secreto. Não vamos aqui discutir os trâmites que comandam o debate e aprovação das emendas parlamentares, porque seria necessário usar palavras que não temos coragem de proferir. Pelo mesmo motivo não pretendemos deblaterar contra a desatenção e a postura desrespeitosa de nossos representantes nos plenários das casas legislativas, diariamente expostas à juventude brasileira pelos jornais e TV. Mas vamos registrar os prejuízos materiais e o impacto deseducativo provocados por esse comportamento, a obstar os elevados desígnios de nossa Carta Magna.
Caros leitores, a quem este texto possa sensibilizar: basta esse inventário, quando um Novo Ano se inicia? Quando as casas legislativas renovam as suas mesas diretoras?
Não, seria pouco. Representaria o abandono da crença no sistema de liberdade política e democracia representativa, cravados em nossa Constituição e acolhidos no coração de muitos. Mas essa devoção só terá sentido, se cuidarmos desses valores contra as ameaças que historicamente impediram a sua vigência plena. Precisamos, portanto, entender as ameaças.
Como ensinou Norberto Bobbio, a doutrina democrática, nas suas origens, imaginava um estado sem corpos intermediários, uma sociedade política isenta de mediações entre o povo soberano composto por indivíduos (uma cabeça, um voto) e os seus representantes no governo. O que aconteceu nos estados democráticos foi exatamente o oposto: sujeitos politicamente relevantes tornaram-se sempre mais os grupos, grandes organizações, associações das mais diversas naturezas, sindicatos das mais diversas profissões, partidos das mais diversas ideologias, e sempre menos os indivíduos. Os grupos e não os indivíduos – por mais emblemáticos que estes possam ser – são os protagonistas da vida política numa sociedade democrática.
Nosso país hoje assiste à surda luta entre grupos que, representando interesses corporativos, se digladiam pelo poder. O Parlamento é a sede ostensiva do confronto, que não tem como referência soberana os princípios da Constituição. O mandato parlamentar não é uma forma de representação na qual o representante possa perseguir os objetivos superiores da nação, pois está vinculado aos interesses do círculo que o elegeu. O largo desvio, entre o juramento formal inaugural de “cumprir a Constituição” e a execução real do mandato, explica em grande medida os desatinos acima relatados. Portanto, enquanto não existirem um ou mais grupos de fato apegados aos ideais constitucionais, e suficientemente fortes para disputar o poder, as ameaças ao exercício sadio da democracia representativa não serão afastadas.
Existe na sociedade brasileira um imenso contingente humano, potencialmente aderente a propósitos cívicos. Existe também no próprio Parlamento. Vamos portanto trabalhar para que eles se manifestem politicamente, de baixo para cima, para um consistente crescimento orgânico. E de cima para baixo, agrupando parlamentares que não aceitem submeter seu juramento a instâncias partidárias ou corporativas com ele incompatíveis. Assim se concretizará, enfim, a promessa dos ideais constitucionais, que se tornarão um rio de águas cristalinas, capaz de acolher todas as correntes que o reconheçam como desaguadouro natural da cidadania em ação. Alinhada à Carta Magna, essa perspectiva não fomentará oposição entre o Estado e o setor privado; ao contrário, promoverá sua complementaridade sinérgica, sob o manto protetor das liberdades democráticas.
Essa reação começará um dia. Por que não agora, no alvorecer de 2025, para que já se faça presente nas eleições de 2026??
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Nota: Figura obtida na plataforma Midjourney
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